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A vida segue

>> segunda-feira, 21 de março de 2011

Equinócio de primavera, chovendo o dia inteiro. Uma tristeza olhar a paisagem cinzenta pela janela, mas é gostoso curtir o cheirinho da chuva tomando um chocolate quente com marshmallow (as meninas adoram ^^)

11 dias desde o terremoto monstro que gerou o tsunami gigante, muita destruição, muito medo e muita histeria.

Depois de uma semana e pouco parece que a vida começa a voltar ao normal lentamente por aqui. Na tv já não passa notícias 24 horas por dia, as prateleiras dos mercados voltaram a encher, as contas continuam chegando...

Há 1 mês atrás postei que meu próximo sonho de consumo seria uma máquina de waffles.  Com apenas meio rolo de papel higiênico no banheiro e sem encontrar em lugar nenhum para poder comprar, até terça-feira eu daria o mundo por um pacote de papel higiênico. Valores mutáveis.

Finalmente encontrei na terça, o mercado repôs alguns, quando reabriu depois do apagão. Eu vi um papel (cartaz) que eles colocaram, li rapidamente e vi que só podia levar 1 por família. De boa, um pacote com 12 rolos dura bastante aqui em casa. Peguei o papel, lenço de papel e fraldas, não tinha arroz, nem água, nem pilhas ainda, mas tinha leite, pão, muitas verduras e carnes. Na hora de passar no caixa uma surpresa: tinha que escolher entre comprar papel higiênico, lenço de papel ou fralda. Apesar de nessa época necessitar de um bom estoque de lenço de papel por causa do kafunshou e de ainda não ter conseguido tirar as fraldas da Karina, não tinha como não escolher o papel higiênico.

Papel duro e áspero, que em tempos normais eu jamais compraria e que geraria reclamações aqui em casa, mas na atual situação foi muitíssimo bem recebido, além de claro, agradecermos imensamente pelo mercado tê-lo posto à venda.

Vou falar como foi o terremoto por aqui.

Sexta-feira (11) 14:46, estava mandando uma receita para minha cunhada, Melissa jogando Xbox na sala, Karina dando comidinha pra boneca e o Helio dormindo lá em cima.  Começou a balançar, a luz foi cortada.  Não foi uma sacudida violenta, tive a impressão que colocaram a casa em cima de uma bandeja e deram para um bêbado carregar.  Mexeu em todas as direções, para direita/esquerda, para frente/trás, para cima/baixo.  Balançou lentamente e bem grande.  A casa estalou mas nada caiu, nada quebrou.  Olho no relógio: 1 minuto, continua balançando, 2 minutos, continua balançando o.O Coloquei as meninas embaixo da mesa e fui acordar o Helio.   Descemos, fechei as válvulas de gás, abri as portas e janelas e esperamos.  Balançou várias vezes depois.  Quando parou o Helio foi dormir porque teria que ir trabalhar de noite, felizmente depois ele recebeu um meru do tantousha avisando que a fábrica parou. 

19:00 e a luz não voltava, casa gelada, termômetro marcando 2°C e sem condições de ligar o aquecedor.  Aliás, aqui em casa, fora o fogão, tudo depende da eletricidade para funcionar.  Inclusive o aparelho telefônico.  Celular sem linha, não tinha como falar com meu irmão.  A única coisa que me restou foi o Twitter e o Skype no iPhone.  Mas depois de twittar a tarde inteira eu já estava quase sem bateria e sem ter como recarregar.  Notebook sem bateria porque as meninas ficaram assistindo desenhos nele.  À luz de uma lanterna e sem saber se voltaríamos a ter energia durante a noite, desliguei a chave geral e saímos pra dar uma volta pela cidade.  Cunhado foi pra Numazu e ficou horas no McDonald's, nós fomos em um mercado e ficamos rodando até cansar XD

Conveniences funcionavam sob a luz dos carros dos funcionários.


O Helio achou melhor voltarmos pra pegar umas roupas, escova de dentes, shampoo, sabonete e fomos à procura de algum lugar pra tomar banho e passar a noite.  4 pessoas em business hotel sairia em torno de ¥20 mil.  Fomos procurar um motel mesmo e descobrimos que em Susono não tem nenhum o.O

Compramos bentôs no 7-Eleven e fomos escolher um perto do IC de Numazu.  Achamos um baratinho, um quarto saiu por ¥3980 e pudemos ficar por 12 horas.  Foi só aí que consegui recarregar as baterias dos celulares e do notebook e assistir o noticiário pela tv.

Imagino como deveria ser engraçado se o povo do motel estivessem nos olhando por alguma câmera, chegamos com 2 crianças, uma cesta com roupas e outras necessidades e a primeira coisa que fiz foi dar comida pras meninas XD

Não consegui dormir porque toda hora o telefone tocava.  Gente desesperada que não se importa de incomodar os outros às 3, 4, 5, 6, 9, 10 da manhã =/

Na volta abastecemos, porque eu havia recebido um email do posto avisando que subiria a gasolina na segunda.

Tudo normal em casa, a luz voltou às 3 da madrugada, conforme cunhadinho havia avisado. 

Começou a semana com o Helio trabalhando normalmente (mais ou menos) porque a fábrica funciona de acordo com os horários do racionamento de energia.  Mas o importante é que ele continuou e continua trabalhando.

Terça-feira, 10 e pouco da noite, estávamos nos preparando pra dormir quando tremeu um montão.  A casa estalou de um jeito que eu tive a impressão que ia desabar a qualquer momento.  Por sorte, o Helio estava novamente em casa e ele logo pegou as meninas e colocou embaixo da mesa.  Fui correndo fechar o gás e abrir as portas.  Caiu algumas coisas mas não quebrou nada.  Karina chorou, como chorou quando balançou na sexta.  Melissa foi pra debaixo da mesa, com a escova na boca mas sem largar o iPhone que continuou jogando como se não estivesse acontecendo nada de diferente.

Felizmente não acabou a luz.  Estava no msn com meu irmão (do Brasil) na hora e ele pode ver que estávamos bem.  Logo meu irmão (de Aichi) ligou pra saber como estávamos.  O epicentro foi aqui do ladinho e por isso tremeu tão forte.  Chegou a rachar uma parede na fábrica do Helio.  Tive muito medo que continuasse tremendo daquele jeito por aqui e desencadeasse o tão esperado Tokai Jishin, porque se isso acontecer, periga o Monte Fuji entrar em erupção.  Mas foi apenas uma das fortes réplicas que ocorreu a semana inteira em diferentes lugares.

Fora algumas coisas que não se encontra nos mercados e do rodízio no racionamento de energia, a vida voltou a normalizar.  Não houve racionamento de gasolina e querosene como parece que teve em vários lugares.

O lema do momento é economizar, e na verdade eu não mudei tanto assim meus hábitos.  Fora o fato de tirar a tv da tomada antes de ir dormir, não estou fazendo nada de diferente.  Todas as dicas que eu dei no post anterior eu já tinha o costume de fazer mesmo.

Todos os dias treme forte em algum lugar e aqui sentimos um pouco mais fraco, mas sentimos.  O cagaço cada vez que treme aliado à apreensão do que acontece nos reatores em Fukushima levaram algumas pessoas ao desespero.  Ânimos alterados, desinformação e histeria. Familiares, parentes e amigos no Brasil, vendo tanto sensacionalismo nos noticiários, cada vez mais assustados.  Um monte de gente que deu vazão à xenofobia discriminando descaradamente japoneses e dekasseguis.  Gente que veio gritar comigo porque a mídia dava ênfase ao terremoto no Japão do que as enchentes no Brasil (como seu tivesse culpa pela matéria que os jornalistas resolveram destacar =/).  Gente que me escreve para me acusar de não ter Jesus no coração, porque "só Jesus é o caminho" (como se eu não tivesse Jesus em minha vida =/)  Muita divergência de opiniões, muito desrespeito, muito exagero, muita mentira, muito estresse.

Vi muita gente que costuma ter muita paciência se tornarem seres intolerantes e participarem de discussões que não levavam a lugar algum.  Claro que isso não aconteceu assim, do nada, de repente.  A pessoa teve que aguentar muita ignorância, muita violência gratuita, muitos ataques, muita crítica quando o intuito era apenas tranquilizar geral, passando e repassando informações seguras e corretas.  Tentei fazer a minha parte repassando notícias para que o caso não virasse o circo que estava se tornando, e também fui chamada de pseudo jornalista emergente.

Muitas pessoas me perguntaram se não penso em ir embora.  Não, gente, fico por aqui mesmo, estou há 20 anos nessa terra e tenho uma vida aqui.  Além do que, estamos bem de verdade, nossa rotina foi pouco afetada e tenho a certeza que ainda estamos mais seguros aqui do que em São Paulo.  Todos os lugares do mundo oferecem algum tipo de risco.   Viver é arriscado, não adianta fugir.

 Não critico quem achou melhor ir embora.  Cada um sabe o que é melhor para si e para sua família, não tenho absolutamente o direito de julgar as atitudes dos outros. Cuido da minha vida e da minha família.  Apesar das várias informações de que não existe um perigo de contaminação, quem pode julgar um pai ou uma mãe de não querer arriscar a vida dos filhos e levá-los embora?  Acho perfeitamente compreensível e normalíssimo pais quererem proteger seus filhos.  Chamar de covardes, oportunistas ou outros nomes mais feios que não quero colocar aqui agora, além de ser um ato grosseiro, não leva a lugar nenhum.  Que diferença faz na sua vida se um sujeito lá longe resolve ir embora com a família?  Por que a necessidade de criticar, de mostrar seu desprezo?  Atitudes lamentáveis que só geram mais brigas.  Independente das decisões que tomamos o importante é ter respeito ao próximo e manter a calma.

Lamentável também quem consegue fazer piadas em cima da desgraça dos outros.  Pior que ainda tem gente que acha graça.  Um comediante que fala "Montei um quebra cabeças do mapa do Japão, foi só jogar todas a peças no chão.  Pronto, já está montado.  Ah, acho que perdi uma peça.  Não tem problema, essa ilha já desapareceu mesmo."  Tenho certeza que nem ele, nem as pessoas que riram da piada iam achar tanta graça se, nessa ilha que desapareceu do mapa, eles tivessem perdido a casa e a família como aconteceu com muitas pessoas.  Posso estar sendo super sensível, mas achei de péssimo gosto.  E se ele tivesse realmente a certeza de estar certo não teria tentado se explicar.  "Saber rir de si mesmo é uma qualidade admirável, rir da desgraça alheia é desrespeitoso." Como recebi em um tweet.  Sem querer pagar de  moralista, essa onda de politicamente correto é um saco e acho mesmo que com o tempo podemos até achar graça em algumas piadas, mas não agora enquanto continua crescendo o número de mortos.  Esse oportunismo achei precipitado e desprezível.

Os japoneses podem não ser tão efusivos para demonstrar seus sentimentos, mas não são insensíveis e muito menos pouco solidários.  Reportagens como os do Marcos Uchôa me deixam revoltada.  Como assim ele afirma que só os brasileiros tiveram a iniciativa de estender a mão e se os japoneses fossem mais solidários as pessoas dos abrigos não estariam sofrendo tantas necessidades?  O cara cai de paraquedas nessa terra com costumes tão diferentes e sem tentar entender o que acontece já sai disparando críticas discriminatórias.

A atitude daqueles brasileiros que viajaram tantas horas para conseguir entregar tanta comida, roupas e cobertores foi realmente louvável.  Sei que não faz diferença para eles, mas ganharam meu respeito e admiração eternas.  É claro que as doações foram muito bem recebidas e foi de grande ajuda.  Mas foi pedido pelas autoridades que não se repita mais isso.  O acesso aos locais destruídos é difícil, não tem combustível e a falta de organização pode atrapalhar apesar das ótimas intenções.  Você pode não conseguir voltar.  Informe-se e leve as doações aos postos oficiais de arrecadação.

Vi na tv, uma japonesa que tinha um mercadinho que foi destruído pelo tsunami.  Ela e o marido foram ao local pra ver se tinha alguma coisa que poderiam salvar.  Acharam muitos sacos de arroz, algumas frutas e verduras que milagrosamente estavam em bom estado sob os escombros.  Encheram o carro com muita comida e a primeira providência foi levar tudo para os abrigos para ajudar quem perdeu tudo, pois eles moravam em uma parte da cidade que não foi afetada pela onda.  Mas obviamente foram afetados pela falta de água, luz, gás e comida.  E pensaram em ajudar...


Caixinhas como essa foram espalhadas pelas prefeituras e sucursais aqui em Gotemba, para receber doações em dinheiro. Para quem precisar de nota, é só se dirigir ao setor de bem-estar social (Shakai Fukushi Ka) que eles emitem a nota sem problemas.

Muitos apartamentos públicos vazios foram limpados às pressas para abrigar as vítimas.  Muitos foram transferidos para outros abrigos em Saitama, em Nagano e em outras províncias.  Muitos médicos voluntários foram atender os recém-chegados.  Muitos idosos e crianças debilitados receberam remédios e cuidados adequados.  Uma voluntária entrevistada disse que apesar de ter doado dinheiro, em casa ela só podia orar e torcer para que tudo terminasse da melhor maneira possível.  Ali, ela podia ao menos cozinhar e fazer companhia, ouvir as histórias ou simplesmente segurar a mão de quem prefere calar sua dor.  Saber respeitar e saber se organizar, sem agir por impulso não significa falta de solidariedade.

A Coca cola doou água, uma estação de esqui doou os agasalhos que alugavam aos esquiadores, a prefeitura de Gotemba mandou 3 toneladas de água.  Imagino que o exército tenha levado, porque no dia do terremoto saíram dezenas de caminhões da base militar daqui.

Fui até lá perguntar sobre doações de cobertores, já que não achava nem arroz e nem água.  Me orientaram para doar dinheiro na prefeitura.  Mesma recomendação do hospital da Cruz Vermelha aqui em Susono, aliás a Cruz Vermelha japonesa tem uma conta no correio para receber doações.  Dinheiro é que mais ajuda nesses casos.  Os organizadores sabem o que realmente se necessita em cada abrigo e podem providenciar comida, remédios, produtos de higiene, ou o que estiver faltando de fato.  Qualquer valor é bem-vindo, cidadão não precisa deixar o salário do mês, basta um pouquinho de todo mundo que já ajuda muito.

Apesar de toda tristeza que sinto cada vez que vejo o número de vítimas aumentarem, a vida continua e temos nossas obrigações diárias para cumprir.

Como já disse aqui, Karina tem alergia a amendoim e havia comido um dentro de um chocolate. Corri pra casa e dei o remédio com as mãos tremendo. Felizmente não aconteceu nada, mas por via das dúvidas achei melhor levar ao pediatra no dia seguinte para pedir um novo exame. Fui pegar o resultado sexta, depois de uma semana, e aproveitei pra ver a "gripe" da Karina. Infelizmente descobri que não as tosses e catarros não eram sintomas de um resfriado, era uma crise de asma que desencadeou por causa do amendoim. Já ganhou um monte de remédios e tem que fazer inalação 2 vezes ao dia. Mas como foi detectado logo, a asma não atacou tão forte.

Na farmácia enquanto esperamos os remédios elas costumam brincar em um elefante. Como elas não ficam doentes e só apareço por lá uma vez, sei lá, a cada seis meses. Toda vez que vamos eu coloco moedinha pra elas brincarem. Mas dessa vez eu não tinha trocados e expliquei que na próxima vez deixo andar.


Karina: Mamãe, Akina quelo moeda.

Melissa: Mamãe não tem moeda, Karina.

Karina: Mamãe não tem moeda?

Melissa: Não, mamãe é pobre, não tem dinheiro.



E a despeito de tudo o que acontece ao redor, magnólias e cerejeiras se encheram de brotos e se preparam lentamente para um dos espetáculos mais bonitos dessa terra.


A ameixeira já colore a paisagem com suas delicadas flores.


 Para finalizar esse post gigante, quero dizer que como muitos brasileiros, tenho um orgulho enorme de ser brasileira, assim como também tenho muito orgulho de minha ascendência japonesa e acima de tudo, orgulhosamente feliz em perceber que, apesar de tudo, podemos ter esperança na humanidade.

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